A fome em África deixou de ser apenas uma situação passageira ou uma consequência isolada do subdesenvolvimento. É uma crise estrutural, persistente e agravada por múltiplos factores interligados. Cerca de 282 milhões de africanos sofrem de subnutrição crónica, o que equivale a mais de um em cada cinco habitantes do continente. No entanto, a verdadeira dimensão da insegurança alimentar em África só pode ser compreendida se ultrapassarmos as narrativas simplificadas e encararmos o problema como o resultado de vulnerabilidades estruturais e dinâmicas globais assimétricas.
A narrativa de que a fome em África é provocada por catástrofes naturais já não resiste à realidade dos dados. As secas severas, as cheias e os solos degradados são, de facto, elementos críticos, mas não são explicações suficientes. Há secas também na Austrália e nos Estados Unidos, e no entanto não há colapso alimentar. O que distingue o continente africano é a frágil capacidade de absorver choques e a escassa margem de manobra para responder a crises.
A crise alimentar em África resulta de uma combinação complexa de factores, dependência alimentar estrutural, conflitos prolongados, fragilidade económica, alterações climáticas e modelos agrícolas desajustados. Cada um destes factores agrava os restantes. Não se trata, pois, de um problema agrícola apenas, mas de um sistema disfuncional que perpetua a fome.
O conflito armado é talvez o catalisador mais devastador, países como a Somália, o Sudão do Sul ou a República Centro-Africana enfrentam uma fome induzida pela guerra, plantações destruídas, mercados encerrados, populações deslocadas, acesso humanitário bloqueado. Quando um agricultor troca o campo por um campo de refugiados, o sistema deixa de produzir e passa a depender.
As alterações climáticas actuam como multiplicador de tensões, a secas prolongadas e inundações repentinas afectam os principais corredores agrícolas, desde o Sahel até ao sul de Angola, reduzindo drasticamente a produção. A perda estimada de 34% na produtividade agrícola africana desde 1960 é atribuída, em grande parte, ao aquecimento global. Paradoxalmente, África contribui com menos de 4% para as emissões globais de carbono, mas sofre um dos impactos mais severos.
A fragilidade económica completa este círculo vicioso, em muitos países, os preços dos alimentos disparam ao menor sinal de crise internacional. A guerra na Ucrânia, por exemplo, fez subir os custos de cereais e fertilizantes em África, com efeitos imediatos no poder de compra das famílias. Quando a alimentação depende de importações e o orçamento familiar é consumido em mais de 60% por comida, o risco de fome torna-se estrutural.
África importa hoje mais de 85% dos seus alimentos de fora do continente, esta dependência expõe os países africanos às flutuações do mercado global e retira-lhes a soberania. Quando há um choque externo , como uma pandemia, uma guerra ou uma crise energética, os países africanos vêem-se sem alternativas viáveis.
Esta realidade não é nova, foi herdada de uma arquitectura colonial que moldou os sistemas agrícolas para exportar matérias-primas, a estrutura de produção permanece desajustada às necessidades nutricionais internas. Países com vastos terrenos cultiváveis e mão-de-obra jovem continuam a importar arroz, milho ou trigo, muitas vezes subsidiados noutros continentes, o que torna os produtos locais não competitivos.
O comércio intra-africano, que poderia ser uma solução, continua a enfrentar entraves logísticos, burocráticos, e em muitos casos, é mais fácil importar de França do que do país vizinho. Em resposta à emergência, a ajuda humanitária internacional tem sido essencial para salvar vidas. A escassez de financiamento, o aumento dos custos logísticos e a politização da ajuda reduzem o seu alcance, e, acima de tudo, a ajuda não resolve as causas da fome, apenas mitiga os seus efeitos.
Os investimentos pontuais em sementes ou fertilizantes não compensam décadas de abandono das infraestruturas rurais, das cadeias de valor locais ou da formação dos agricultores.Muitos destes programas, apesar das boas intenções, reforçam a dependência de insumos externos, mantendo os sistemas agrícolas locais subordinados a lógicas de mercado internacional.
A saída para a crise alimentar em África não está apenas no aumento da produção, mas na construção de sistemas alimentares soberanos, resilientes e sustentáveis. Isso implica:
● Reformar o acesso à terra, protegendo os direitos de uso comunitário e garantindo segurança jurídica a pequenos agricultores, em especial mulheres e jovens.
● Investir em agroecologia, reduzindo a dependência de fertilizantes importados e adaptando as práticas agrícolas aos ecossistemas locais.
● Desenvolver infraestruturas rurais, estradas, silos, mercados, que permitam escoar e conservar a produção.
● Fortalecer o comércio regional, removendo barreiras não tarifárias e integrando as economias agrícolas vizinhas.